Cultura

Foto: Acervo Ateliê
Por Carolina Rosa
O que para muitos é apenas uma calçada, para o coletivo Ateliê Cabeça de Nego é chão sagrado de criação, reencontro e resistência. Nascido nas ruas do Parque Santo Antônio, zona sul de São Paulo, o ateliê tem ocupado os espaços públicos do território com arte, moda, cultura preta e os saberes ancestrais que atravessam gerações de mulheres negras e periféricas.

Foto: Acervo pessoal
Criado por mulheres, o Ateliê Cabeça de Nego é fruto de referências de matriz africana e vivências partilhadas entre vizinhas, tias, mães e avós. O que começou com oficinas e encontros informais virou movimento, estética e linguagem própria. Hoje, o coletivo, constrói um caminho de economia criativa e formação cultural que tem na arte manual uma ferramenta de autonomia, autoestima e geração de renda.
“As oficinas que a gente realiza têm esse pé na capacitação, sim, mas são também espaços de fortalecimento de identidade. Ensinar uma técnica é abrir caminhos, especialmente pras mulheres pretas e periféricas que muitas vezes só precisam de uma chance para florescer o que já carregam”, afirma Lariê, idealizadora do projeto.

Essa herança não vem dos livros — vem do colo. Vem da cozinha, do quintal, do gesto atento das mais velhas que bordavam, costuravam, pintavam, criavam beleza com o pouco. Em uma das atividades recentes do coletivo, a pintura de panos de prato foi ponto de partida para acessar afetos, curar ausências e afirmar que o que foi historicamente desvalorizado é, na verdade, arte viva, moda periférica e resistência estética.
“Enquanto as tintas tocavam o algodão, também íamos acessando memórias. Cada traço era uma conversa com o passado e uma afirmação do presente”, conta Lariê. “Aqui, um pano de prato pintado à mão é mais do que um utensílio: é símbolo de herança, de cuidado e de identidade”, completa.
Criar, vestir, resistir: o fazer como linguagem periférica
No Ateliê Cabeça de Nego, o fazer manual não é romantizado — ele é politizado. O coletivo desafia a lógica elitista da moda e propõe um vestir que comunica histórias, corpos e pertencimentos. Com cores, tecidos, estampas e muito improviso, o grupo constrói uma estética da quebrada, onde a roupa não disfarça: revela.
“A arte é força, cura e conexão. É com ela que a gente mostra que a periferia não só resiste — ela RECRIA.”
É esse espírito que também atravessa o festival O Legado na Calçada, que o ateliê realiza pela primeira vez em 2025. Um evento que vem dessa caminhada e acontecerá no sábado, dia 7 de junho.

O evento gratuito é uma celebração, mas, sobretudo, uma afirmação sobre o propósito do coletivo: transformar a rua em espaço de potência. A programação contará com grafite, teatro, música, dança, desfile de moda e exposição, tudo pensado para devolver à rua aquilo que ela ensinou: encontro, criação, movimento. Mas, mais do que a festa, o festival é reflexo de um processo. De um legado que já vem sendo escrito a muitas mãos, sobre o cimento quente da zona sul.
Porque quando o Ateliê Cabeça de Nego ocupa a calçada, ele não está só pintando paredes ou vestindo corpos — está escrevendo história e reafirmando memórias.