Coluna Anti-Heroíca
Por Matheus Polito Monteiro
Qual é a mercadoria perfeita, para empresas que trabalham no meio cultural, senão seus artistas, seus astros de TV, cinema, músicos, apresentadores e aí por diante? Porém, há um problema perceptível para a contraditória “indústria cultural”, seus produtos são perecíveis, e podem sair de moda mais rápido do que seu sucesso meteórico, daí então surge a busca incansável desses produtores da grande mídia em achar um artista que nunca saia de moda, que garanta sempre esse sucesso meteórico, uma busca sem fim e que está apenas no mundo das ideias.
Ou será que não? Se pararmos para pensar há sim uma figura que transpassa o tempo garantindo sucesso estrondoso, vendas meteóricas e uma legião de fãs mais fanáticos do que a maior entusiasta da Taylor Swift, Jesus Cristo o salvador da humanidade, o messias. Porém, há um problema nítido, como trazer Jesus de volta a vida e garantir que sua empresa vá lucrar em cima da sua personalidade?
Em 2019 uma emissora de televisão resolveu essa questão e criou um programa de TV extremamente polêmico: um reality show que acompanharia o crescimento de um clone de Jesus Cristo! Pessoas se revoltaram com o sacrilégio tomaram as ruas, outras acreditaram que seja finalmente a segunda vinda Dele, outras queriam acompanhar apenas o entretenimento e a comunidade científica ficava alvoroçada.
Não lembra disso? Bom, isso realmente não aconteceu na vida real, se trata na verdade da premissa de um quadrinho que começou a ser lançado no extinto selo Vertigo em 2012, que chegou ao Brasil em 2013 nas páginas da revista Vertigo publicada pela Panini e posteriormente a história foi compilada em uma edição encadernada, “de luxo”, com alguns extras sobre o autor e a concepção da obra. Se trata da obra do quadrinista americano Sean Murphy, Punk Rock Jesus.
O quadrinho abre com um atentado a vida de uma família de irlandeses, aparentemente envolvidos com o Exército Republicano Irlandês (IRA), onde apenas a criança sobrevive e é levada para ser criada pelo tio, que é um militante e paramilitar das forças do IRA, e então salta no futuro em que vemos a criação de uma espécie de Show de Truman Gospel. Uma cientista afirma que recebeu um DNA de 2000 mil anos de uma emissora de TV, da qual afirmava se tratar do DNA do próprio Jesus Cristo, e a emissora pretende então clonar Jesus e fazer um reality show com esse clone.
O enredo traz uma história cheia de constantes reviravoltas, flashbacks de personagens, principalmente de Thomas, a criança que sobreviveu ao atentado no começo do quadrinho e agora é um ex-militar do IRA, que passou a colaborar com o governo britânico e agora trabalha como guarda-costas do menino Cris (o clone de JC), e sua mãe.
É preciso dizer que, em uma primeira leitura o quadrinho, pode parecer exagerado, sempre com ação demais em suas páginas para mostrar seu personagem badass em ação. Às vezes, até mesmo explícito demais em seu argumento, sem espaço para sutileza, com falas dignas de adolescentes recém declarados ateus que acabam se tornando tão pregadores quanto os pastores evangélicos, em seus círculos sociais.
Porém, em uma segunda leitura o quadrinho parece bem coeso, pois a história trata justamente de um adolescente recém desiludido com a religião, e que tem todos os motivos para odiá-la. E até mesmo a ação, que outrora parecia enfiada no roteiro porque precisa de ação, se justifica. Afinal, o terrorismo cristão é uma realidade que vivenciamos em governos de extrema-direita as eleições de 2024 tão aí para nos lembrar disso.
Mas é preciso dizer que esse quadrinho tem algo a mais, algo que pode passar despercebido em uma primeira, segunda, ou até mesmo terceira leitura, pois não é algo que o roteiro se preocupa em aprofundar, mas ainda assim está lá: a Lobotomia Adolescente!
Em teoria estamos acompanhando a pessoa mais popular da humanidade sendo patenteada como marca e mercadoria de uma emissora de televisão. Pessoas já são patentes de grandes empresas, podemos citar grandes astros da música presos em contratos multimilionários a gravadoras e empresários que os comercializam como produtos sem escrúpulos desde pelo menos a segunda metade do século XX.
O grande problema para as empresas midiáticas são que seus produtos são voláteis, não são eternos e sempre precisam jogar um artista, antes o grande sucesso de vendas, no ostracismo e correr para a busca de um novo produto emergente “(…)Pois a produção em massa de artigos tão imprevisíveis e mutáveis quanto canções e artistas de sucesso ainda dependem em uma grande medida de atenção, adivinhamento, intuição, ou mera sorte” (HOBSBAWM, 2023, p. 245). O sonho de todo empresário dono de uma empresa midiática, seja emissora, produtora de filmes, gravadora, ou o que quer que seja, é achar aquele artista eterno, que nunca ficará fora de moda e sempre garantirá vendas exorbitantes.
Cris é, portanto, a mercadoria perfeita, aquela que nunca vai se desgastar com o tempo, mesmo que ele venha a morrer, pois seu legado já veio antes dele e já ajuda a engordar os bancos das igrejas há pelo menos dois milênios. Cris é a “personalidade máxima”.
O tiro acaba saindo pela culatra, quando Cris após uma série de abusos e finalmente acaba presenciando a morte da própria mãe, em uma situação bem suspeita. Tanta exposição e exploração em cima do garoto faz com que ele acabe enxergando na religião e na mídia a sua maldição. Então a partir da sua ultra-visibilidade a la estrelas mirins e adolescentes da Disney, como Miley Cyrus, Cris se rebela contra seus donos e a partir disso resolve dar um golpe na mídia, e usar sua imagem mercadológica para uma mensagem antimercadológica e antirreligiosa.
O debate que não fica tão nítido no quadrinho, quanto sua constante tentativa de se mostrar declaradamente ateu, é como a sociedade se organiza através de seus astros e ídolos. Esses que antes da difusão midiática do século XX se encontravam em templos, agora se encontram em programas de televisão, filmes e os templos modernos mais conhecidos como casas de shows.
O roteiro absurdo é acompanhado por uma arte extremamente energética, característica de Murphy: traços agressivos, linhas que parecem cortes de faca sempre saltando das páginas, sempre muitas linhas e riscos no cenário, nos rostos dos personagens e olhos destacadamente expressivos. O quadrinho é todo em preto e branco, escolha apropriada que traz um ar de quadrinho underground, ou de zines punks.
Punk Rock Jesus é uma leitura no mínimo divertida, ainda que tenha seus tropeços.
Referências
HOBSBAWM, Eric. A História Social do Jazz. Editora Vozes, São Paulo, 2023.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Contraponto, Rio de Janeiro, 2007.
BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à História Contemporânea. Editora Zahar, Rio de Janeiro, 1966.
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Sobre a coluna: Anti-heroica é uma coluna de opinião e crítica que aborda temas ácidos e provocativos dentro de obras de arte, principalmente quadrinhos e música, e convida o leitor a um debate fora da zona de conforto, em busca de uma reflexão que desafia o senso de heroísmo messiânico, a busca por respostas fáceis e rápidas.
Matheus Monteiro: Historiador formado pela Universidade Estadual de São Paulo, morador do Capão Redondo, foi idealizador do 1° PerifaCon. Realiza pesquisas na área de História Cultural, com foco em quadrinhos, além de ser professor de dois cursinhos populares na cidade de São Paulo.
Instagram: @o_antiheroi