quinta-feira, novembro 7

Correndo da margem: transmasculinidades na arte periférica

Por Nero Santos

A gente cria/constrói imaginários sociais todos os dias, em busca de ser sobrevivente, o protagonismo de pessoas transmasculinas na arte periférica é sobre ocupar, persistir reinventar o modo de fazer arte, movimentando nosso rolê, curtindo sem se afogar, lembrando sempre que nossos corpos dissidentes já são reconhecidos, porém, apagados numa sociedade que fecha os olhos para nossa existência. É incrível como a gente se desdobra para ter várias funcionalidades, mas não tem oportunidade. Atravessando a cidade de São Paulo, da Sul a Oeste, da Norte a Leste, do Centrão aos extremos, ser transmasc arteiro e viver de arte na “selva de pedra” é ser visionário!

Nessa reportagem, a proposta é reconhecer o corre de artistas transmasculinos independentes e periféricos, enaltecer sua arte e vivenciar, através dos relatos, um pouco da sua correria diária atrás das notas no meio cultural de SP. Conheça os arteires:

Vitos: Nascido na zona norte de SP, aos 31 anos, Vitos se lê como transmasculino não binário, que se coloca profissionalmente como multiartista. Suas pesquisas começam na fotografia em 2015 e se expande em 2019  para as artes gráficas e em 2021 nas artes plásticas, se destacando também na tatuagem, com o Estúdio de criação “Eu Que Fiz Ta“. Suas criações evidenciam expressões políticas trans racializadas de forma contemporânea. Os trabalhos mais recentes incluem audiovisual e pesquisas de DJ que partem de sua inclusão profissional ao coletivo Fuleragi em 2023.

Luã Ayo: Experimentador artístico, Luã Ayo Ayana é um transmasculino nb preto residente na ZL de São Paulo. É transmutador têxtil, maquiador, arte-educador, músico e aventureiro da culinária. Em seus trabalhos busca subverter através do lixo/luxo e descarte têxtil os padrões de beleza (harmonia, simetria e proporção) criados através da colonização para assim investigar e trazer sua ancestralidade/futuro.

Quando a arte te encontrou?

Luã Ayo: Eu sempre fui uma criança diferenciada, eu diria. A minha mãe sempre desenhou muito comigo nas paredes de casa mesmo, para me desenvolver também, já fiz muita boneca com a minha avó de sabugo de milho. Então, acho que sempre tive essa visão artística me acompanhando também, sempre gostei muito de experimentar as coisas de pintar e depois que fiquei mais velho, isso veio de outras formas pra mim.

Vitos: Para mim é mais como se eu tivesse nascido com ela e tivesse se revelado. Sabe um véu que vai se revelando, vai se definindo, alguns caminhos, algumas ideias, alguns conceitos. Acho que é isso, é algo que eu revivo dentro de mim, sinto como se realmente fosse algo ancestral, sabe?

Como é ser transmasculino vivendo de arte na periferia?

Luã: Nossa, é babado, eu ainda sinto que a identidade transmasculina é muito apagada, em muitos lugares, inclusive na periferia, infelizmente. Mas, tento lutar, não sei se lutar é a palavra exata pra isso, né? Mas, pra que as pessoas me enxerguem, enxerguem pessoas como eu, assim, dentro dos espaços de várias formas. Ando vendo bastante disso nas feiras que eu tô fazendo, principalmente como isso é enxergado, ou nos lugares que as coisas acontecem, é um pouco mais difícil ver pessoas transmasculinas aparecendo.

E isso faz muita falta, e falta de referência também e aí acaba que a gente tem que ser nossa própria referência, muitas vezes, em vários espaços ou ser a única pessoa ali, como uma cota, sabe? Isso também acaba que nesse lugar é muito difícil a gente conseguir algum tipo de respeito com a nossa identidade. Tem que se esforçar muito, principalmente se a gente não tá inserido em um padrão de masculinidade esperado, fica muito mais babado de se colocar. Mas, ao mesmo tempo, eu me sinto muito gratificado por ser um transmasculino na periferia e por estar sendo uma referência também. Por ter as referências que eu tenho das pessoas que eu conheço. Porque é isso, muitas pessoas já me falaram que eu sou referência.

Vitos: Ah, incrível! Eu acho que tem muita coisa para ser explorada, sabe? Tirando toda essa pauta social-resistencialista de como viver é difícil, tirando toda essa parte, eu acho que a gente vive num lugar muito privilegiado culturalmente. Acho que a diversidade me atravessa em perspectivas de caminhos que talvez eu não teria traçado se eu tivesse me limitado só ao meu imaginário, sabe? Acho que é isso, eu me encontro com vários corpos também que estão na periferia, que são trans, transracializados, e tipo, com essa pauta, com esses diálogos sobre identidade de gênero e sobre nossas possibilidades sexuais também, acho que tem expandido, tenho mapeado muito mais essas pessoas, principalmente na periferia. São sempre pessoas bem, como eu posso dizer, excepcionais!

Quem são as pessoas que mais consomem o trabalho de vocês?

Luã Ayo: São pessoas do meu ciclo mesmo, são outras pessoas trans, outras pessoas racializadas, mas é babado porque muitas vezes as pessoas também não têm condições de consumir o meu trabalho. Então às vezes vai num lugar de troca mesmo, muitas vezes ou de presente, mas mesmo assim ainda são as pessoas que mais compram o meu trabalho, por exemplo, que mais escutam, ou que mais incentivam meu trabalho.

Vitos: Ah, as pessoas cheirosas, né? Que tem bom gosto, que entende minimamente que esse mundo não tem nada de normal, que normalmente são pessoas trans, que entendem essa complexidade, que, na verdade, enxerga, né, entender, eu acho que já é muita coisa.

 Eu converso com as pessoas que consomem minhas artes, e é engraçado como, às vezes, o que a pessoa entende é totalmente outra coisa, mas ainda assim tá conectado, tá ligado?

Então, é isso, eu acho que minhas obras acabam sendo essa piscina que também é um espelho, sabe? As pessoas vão realmente enxergar o que tem dentro delas e refletir também sobre.

Tem alguma dificuldade em expor seu trampo para pessoas fora do nosso ciclo?

 Luã Ayo: Eu tenho muita dificuldade em expor o meu trabalho pra fora desse ciclo e também de ser valorizado, ser visto nesse trabalho. Todo final de semana eu tô expondo aí, eu vendi, tipo, três peças, no máximo, de quatro feiras que fiz. Muita gente se interessou pelo meu trabalho até, mas ninguém queria pagar, sei lá, por uma peça, uma jaqueta que pode ser 150 reais, ou uma calça. Mesmo pensando que aquele processo é muito artesanal e eu explicando todo o meu trabalho e como eu faço, mas as pessoas sempre estão muito dispostas a pagar esse mesmo preço em uma roupa de fast fashion, ou muito mais caro em roupas de grife, ou outras coisas que não são pensadas.

Vitos: Com certeza, ainda mais que o veículo é dinheiro, a veiculação hoje em dia tanto virtual quanto gráfico, de qualquer forma, ela tem sido muito extravagante. Digamos que você tem 10 segundos de tela pra convencer alguém sobre alguma coisa, sobre qualquer coisa e você tem que ser totalmente extravagante pra você chamar atenção às vezes, sabe? Porque eu fico muito chocado como eu consigo de uma forma orgânica ir alcançando as pessoas atualmente.Todas as pessoas que eu vou alcançando, vêm de uma ligação de alguém que já conhece meu trabalho e assim vai se dizimando. É isso, porque é questão de comunicar, de sentimento, de debater algo com a minha arte e ela se comunica com várias pessoas, não só com pessoas trans. Até porque, acho que os debates que abrangem pessoas trans atravessa qualquer corpo, tá ligado? Não só o corpo trans! Isso acaba bloqueando a gente de ter alguns acessos sobre o nosso próprio corpo, como a gente é colocado numa caixa e totalmente vinculado a só assistir e vivenciar o que tá dentro daquela caixa. Querendo ou não, é um ciclo de pessoas que eu acabo alcançando ali dentro da minha bolha. Isso também dificulta a gente acessar essas outras caixas e tal, mas é interessante, esses acessos costumam acontecer, ainda mais na internet.

Quais são suas refs e o que inspira vocês?

Vitos: O afrofuturismo. Quando a gente fala de afrofuturismo, parece que estamos falando, sei lá, de máquinas no futuro, eu acho que eu aplico muito mais nesse conceito de Sankofa que é um provérbio africano do povo de Ghana, que fala sobre resgatar o passado para construir o futuro. As pessoas acham que tudo é atual, tudo é do moderno, nada vem sendo construído, nada é uma evolução, sabe as pessoas se enganam. As minhas referências, elas já existem, tudo que eu vou construir, ou já construí, sempre existiu. Acho que a minha contribuição, ela vem de uma evolução de muitas ideias, que permeiam o universo, mas, no geral, de nomes, eu acho que está bem ligado à cultura preta, da diáspora africana, no geral. Ela fala sobre afrofuturismo, tanto na linguagem gráfica, quanto na linguagem musical Acho que artistas gráficos, meus amigos, têm sido bastante referência pra mim. O Nerinho, o Isaac, o Akoté, o Eunico, o Tamu, que é um tatuador muito foda. Uma grande referência preta aí na história da tatuagem, tá ligado? Eu acho que eu tô rodeado de mentes brilhantes, que são tão modernas quanto ancestrais, pra mim, acho que essas têm sido minhas referências.

Luã Ayo: Nesse meio trans das artes, no geral, eu acho que eu gosto de estar com a galera, das artes visuais, que faz de tudo. Dentro da música, dentro da moda, mas sempre com pessoas parecidas comigo, porque aí os trampos conversam mais, as pessoas compreendem mais o que a gente tá fazendo ali, é muito mais fácil de se comunicar. Olha, tanta gente no meu meio, eu acho que as pessoas que estão mais próximas de mim são as que mais me inspiram. Pessoas que estão à minha volta, basicamente, todas as pessoas que criam arte, são as minhas referências e são o que eu mais inspiro, seja na música, nas artes visuais, na moda. Amo observar esses movimentos e também os movimentos cotidianos, tipo, as pessoas são muita referência pra mim, observar as pessoas, o comportamento delas, como elas fazem as coisas, me dá muita inspiração pra criar a cada dia.

Como vocês enxergam seu corre artístico e se imagina nos próximos anos?

Vitos: Atualmente, eu coloquei um investimento 100% da minha vida nisso, porque a gente quando vem desse desses recortes sociais, acaba tendo que fazer uma escolha para viver de arte. E é um caminho que normalmente não é posto para gente. Como uma ideia, como uma possibilidade. Acho que o desafio dentro disso tudo, para mim, tem sido entender uma forma jurídica de me colocar como uma pessoa e um profissional. Não só uma pessoa que se exponha artisticamente, mas que entende esses processos também, para que eu não tropece! Acho que atualmente eu me vejo expandindo, ferramentas, lugares e vivenciando o lazer mesmo entendendo minha alimentação cultural.

Luã Ayo: Olha, tá difícil ser artista hoje em dia, então tá difícil de imaginar muita coisa, mas eu boto mó axé nas coisas que eu faço. Então, me imagino ganhando muito dinheiro, que eu quero ganhar dinheiro com a arte, eu tenho muitas ideias de muitos projetos e criações de coisas. Eu me imagino em exposições e sendo contratado pra palestrar, e criando cursos e oficinas nesse mundo da arte, da moda, da música, criando coletivamente. Também tenho muita vontade, mas tenho muita dificuldade de achar pessoas que queiram criar coletivamente também. Até porque, tá cada um no seu corre, então é difícil se encontrar pra fazer isso, principalmente quando não tem dinheiro envolvido, né? Ah, eu me vejo assim, em muitos lugares, de acesso, mas também de transmutação. Acredito que a minha arte ainda vai se transmutar muito, eu vou descobrir muita coisa sobre mim mesma.

Nero Santos (23) | Campo Limpo 

Artista visual, cria do Pq Regina, transmasculino, que faz da arte sua morada desde os 13 anos de idade, desde então vem colorindo o seu mundo imaginário, expondo tudo o que sente em arte, transpassando o mundo na sua visão!
Instagram: @imagi_nero

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