Coluna Ombala
Por Silvia Mungongo
Quando falamos de morte, quase sempre pensamos em fim. Foi assim que me ensinaram também: morreu, acabou. Mas essa ideia não é uma verdade absoluta. Em muitas culturas africanas tradicionais, a morte não representa o fim da existência, e sim a passagem para outra etapa da vida.
O teólogo africano John Mbiti (1969) dizia que a vida continua depois da morte, só que em outro plano. A pessoa não desaparece — apenas muda de lugar. Sai do mundo físico e passa a viver no invisível, onde continua presente de uma forma diferente. Essa maneira de entender a vida e a morte é muito diferente do pensamento ocidental, onde tudo é dividido em “vivo” ou “morto”, “presente” ou “ausente”.
Na cultura em que cresci, especialmente em comunidades como a do povo Tshivenda, do norte da África do Sul, a morte é vista como o início de uma conexão ainda mais profunda com tudo o que existe. A pessoa falecida se torna um ancestral. E os ancestrais não são fantasmas, nem estão distantes — são guias espirituais, fontes de sabedoria e proteção, que continuam participando do nosso cotidiano.
Na minha vivência, lembrar de quem já partiu vai além da saudade. É também respeito, cuidado, fé. Quem morre não é só lembrado em histórias ou fotografias. Continuamos fazendo parte da nossa caminhada. Como diz Setsibe (2012), os mortos se tornam uma extensão dos vivos. Eles não deixaram de existir — só mudaram de forma.
Essa visão muda completamente a maneira como eu lido com a morte. A dor da perda não desaparece, claro. Ela existe e machuca. Mas quando acredito que aquela pessoa ainda está presente de alguma forma, tudo muda. O luto ganha outro significado. Os vínculos continuam vivos. E até a vida ganha um novo sentido.
Lembra daqueles vídeos de funerais animados que circularam nas redes sociais, especialmente na época da pandemia? Muita gente achou estranho. Mas aquilo reflete os rituais de algumas comunidades africanas, onde a morte não é só tristeza — é também celebração. Para muitos de nós, povos de origem africana, a pessoa que partiu não desapareceu. Ela apenas foi para um lugar onde não existe dor, nem sofrimento. E continua viva — em nós, com a gente.
É importante dizer: esses saberes ancestrais, que chegaram ao Brasil com os povos escravizados, muitas vezes são tratados como superstição ou ignorância. Mas não são. São filosofia, espiritualidade, resistência. São outra forma de ver e viver o mundo — mais conectada, mais coletiva, mais espiritual. Talvez, num país como o Brasil, onde a desigualdade interrompe vidas cedo demais, especialmente nas periferias, seja urgente resgatar essas visões.
Porque elas nos ensinam que ninguém some por completo. Que existe continuidade. Que, mesmo depois da morte, seguimos juntos. A pessoa continua existindo por inteiro, com um novo corpo, num mundo muito parecido com o nosso — só que sem dor, sem fome, sem sofrimento. Esse outro lado não é céu nem inferno. É a vida que continua, de outra forma. E mais do que pensar no “depois”, a nossa espiritualidade valoriza o agora. Como dizia Mbiti (1969), o foco está em viver bem aqui e agora, mantendo os laços com a comunidade e com os ancestrais.
Essa forma de enxergar a morte me trouxe um certo alívio. Ela não é o fim. É parte do ciclo da existência.
Recentemente, perdi uma amiga muito especial. Fiquei profundamente abalada. Custei a acreditar. Senti revolta. Mas aos poucos, fui me lembrando do que aprendi com minha cultura, com minha ancestralidade. E isso me ajudou a respirar. Hoje, sinto a presença dela comigo todos os dias. Entendi que ela se tornou minha ancestral. Ela fez a travessia para um lugar onde a dor não existe mais — e foi justamente a dor que a tirou de nós.
Se você está vivendo o luto, saiba que eu não escrevo isso para minimizar sua dor. Muito pelo contrário. Escrevo para compartilhar um pouco de esperança. O luto é cheio de perguntas, de silêncios, de dias nublados. E, mesmo sendo algo comum, nunca estamos realmente prontos para perder alguém que amamos.
Dói dizer adeus. Dói imaginar que talvez a partida pudesse ter sido evitada. Mas lembre-se: a morte não apaga a existência. Ela transforma. E mesmo depois da despedida, o amor continua.
Para Teodora Marques.
In memoriam.
Referências bibliográficas
Bastide, S. 1968. Religiões africanas e estruturas des civilizações. Presença Africaine , (1):66–78.
Dlukulu, PM 2010. Viúvas Negras Urbanas: Suas experiências e enfrentamento do luto em uma sociedade em transição. Tese de Doutorado não publicada,
Universidade de Pretória, Pretória: África do Sul. Pretória: University of Pretoria Press.
Mbiti, J. 1969. Religiões e filosofia africanas . Londres: Heinemann, 1969.
https://medium.com/@erichrickens/an-african-perspective-on-death-fbc713f11613
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Silvia Mungongo: natural de Luanda, Angola, atualmente residente na cidade de São Paulo, é socióloga, ativista, poeta e jornalista. Profissional de comunicação com sólida experiência em redação, locução, reportagem e edição. Atuou em diversas plataformas, como rádio, televisão e mídia digital, desenvolvendo e apresentando conteúdos informativos e engajadores.
Sobre a coluna: Ombala é uma palavra na língua angolana Umbundu, que significa capital ou sede. Portanto, um lugar de encontros e reencontros e onde normalmente residem Reis e Rainhas. A coluna pretende ser um espaço de reencontro da cultura africana, seus fazedores e sua abrangência na diáspora. Será um prazer ter-vos por aqui. Ngasakidila!