quarta-feira, agosto 27

Pixação: ato de criminalização, permanência e disputa por espaço urbano

Pixador sobre escada realiza inscrições em parede já ocupada por pixos e lambe-lambes religiosos. – Foto: P/SP*Osso / acervo pessoal

Por Maia Aiello

“Enquanto existirem muros, existirão as pixações”.

A afirmação é de P/SP*Osso, pixador desde 1985, morador do Grajaú, Zona Sul de São Paulo, e um dos mais antigos da cidade. Com quatro décadas de atuação, ele acompanhou de perto a consolidação do pixo como prática cultural nas periferias paulistanas.

Na Zona Sul de São Paulo, região marcada por menor presença de equipamentos culturais e serviços públicos em comparação com áreas centrais, a pixação continua presente como forma de expressão entre grupos de jovens das periferias. Mesmo sendo criminalizada por legislações específicas, alvo de campanhas institucionais e amplamente rejeitada por setores da sociedade, a prática se mantém ativa nos muros, marquises, fachadas e viadutos da cidade.

A pixação surgiu em São Paulo no início dos anos 1980, em diálogo com o movimento punk rock e rock and roll, com o surgimento de bandas de garagem e outras manifestações culturais da juventude da época. Diferentemente do grafite — que ganha reconhecimento institucional quando autorizado ou inserido em contextos oficiais, como murais e projetos culturais —, o pixo se consolidou como uma prática radicalmente marginal, coletiva, anônima e de acesso direto à rua. Mesmo o grafite, quando feito sem permissão, ainda é criminalizado e tratado como vandalismo pelas autoridades.

Na capital paulista, o estilo é marcado por letras verticais, muitas vezes ilegíveis para quem está fora do movimento, traçadas com tintas variadas, como látex e spray. Cada conjunto de letras representa um grupo, uma área da cidade ou o nome de “guerra” do pixador. Além do conteúdo, o local onde a inscrição é feita é determinante: quanto maior for a visibilidade e a dificuldade de acesso, maior o prestígio da ação.

A prática envolve risco, planejamento e reconhecimento entre os envolvidos. O ato de pixar em locais altos ou de difícil acesso costuma ser mais valorizado do que a própria mensagem escrita. Esse código interno reforça os laços entre os pixadores e organiza uma lógica própria, paralela ao que se entende como arte ou expressão cultural formalizada. “A pixação apaga, mas a amizade fica”, resume Osso, destacando que, mesmo que os muros sejam cobertos, os vínculos entre os praticantes permanecem.

A pixação é enquadrada como crime ambiental e ato de vandalismo, de acordo com a legislação brasileira. A Lei de 1998 de nº 9.605 prevê pena de detenção de três meses a um ano, além de multa para quem pixar edificações ou monumentos urbanos. Além disso, a prática pode ser interpretada como crime de dano, segundo o Código Penal, com penas que variam conforme a gravidade do caso.

Em São Paulo, a repressão se intensificou com a promulgação da Lei Cidade Limpa, em vigor desde 2007. Voltada originalmente à remoção de publicidade excessiva, a legislação passou a ser utilizada também como instrumento de combate ao pixo nos espaços urbanos, e mais recentemente o “Projeto Cidade Linda”, implementado em janeiro de 2017 e liderado por João Doria.

Essas ações se concentram com mais intensidade em áreas periféricas, onde a pixação é frequente. Em muitos casos, o combate à prática envolve a remoção imediata das inscrições, aplicação de multas e reforço da vigilância, o que limita o uso desses espaços por grupos que atuam fora das normas convencionais de ocupação urbana.

Pixação: linguagem política e disputa pelo espaço urbano

Mais do que uma manifestação estética, a pixação é uma linguagem forjada na exclusão social e na ausência de representatividade. Para quem a pratica, marcar os muros da cidade é afirmar uma identidade frequentemente invisibilizada, ocupando à força espaços que historicamente os excluíram.

“Para a sociedade a pixação não é bem vista, porque são só paredes sujas e muitas vezes eles nem entendem o que está escrito lá. Mas, pros pixadores, tem outros significados”, explica Osso. Ele ainda destaca que o objetivo do pixador não é transformar o ato em arte: “O pixador não quer que o ato dele seja considerado arte. Ele é um transgressor, ele quer mostrar pra sociedade que ele existe, que é audacioso”, completa.

Embora o pixo seja ocasionalmente rotulado como “arte urbana” por observadores externos, muitos praticantes não se identificam com essa classificação. A ação não é pensada como arte ou intervenção estética: para alguns pixadores, trata-se de um ato transgressor que busca afirmar a própria existência diante de uma cidade que frequentemente os invisibiliza.

Na Zona Sul de São Paulo, é comum ver siglas e códigos espalhados por muros residenciais, passarelas e prédios abandonados. Essas inscrições funcionam como meio de comunicação entre grupos e também como afirmação territorial. O pixo torna-se, assim, uma resposta direta ao apagamento das identidades periféricas.

A prática vai além da ideia de “rebeldia adolescente”. Há nomes que atravessam décadas nos muros da cidade, levados por pessoas que começaram a pixar na juventude e seguem na prática aos 40, 50 anos ou mais. “Pessoas que às vezes começaram lá na adolescência e sempre quiseram deixar sua marca, e mesmo passando décadas continuam pixando para dar um sinal de vida e mostrar que ainda estão na ativa”, diz Osso.

A disputa pelo espaço é simbólica e física. Ao intervir em locais de grande circulação ou de difícil acesso, os pixadores rompem com o silêncio imposto às margens da cidade. Em uma região marcada pela carência de políticas públicas e pela ausência nos meios de comunicação, o muro se converte em veículo alternativo de expressão coletiva. O traço preto, contínuo e repetido, é o registro da existência de sujeitos e territórios frequentemente ignorados.

Em oposição a uma cidade cada vez mais regulada e higienizada, a pixação propõe um modelo de ocupação espontâneo, direto e insurgente. Os muros se tornam mapas da resistência, onde se desenham outros modos de viver, circular e deixar marcas.

A cidade apagada

Projetos de revitalização urbana também têm sido utilizados como estratégia de remoção da pixação. Em algumas situações, a revalorização estética de regiões urbanas envolve a pintura de fachadas e muros onde antes havia inscrições, sem considerar práticas culturais que já ocupavam esses espaços.

Apesar das ações voltadas à remoção, as marcas da pixação seguem aparecendo nos espaços urbanos. A prática continua presente, mesmo após iniciativas de limpeza ou revitalização, refletindo a continuidade dessa forma de intervenção. Esse ciclo de remoção e aparição evidencia um contraste entre diferentes formas de uso e apropriação do espaço público na cidade.

Pixação às margens do rio Tietê na Zona Sul de São Paulo, com reflexo na água que reforça a ocupação visual do espaço urbano. – Foto: P/SP*Osso / acervo pessoal

Apesar da constante repressão e do estigma social, a pixação segue viva como um estilo de vida na Zona Sul de São Paulo e uma forma legítima de expressão e enfrentamento. Mais do que intervenção visual, ela expressa uma disputa por voz e visibilidade em uma cidade marcada por contrastes. Ao ocupar fachadas, muros e estruturas urbanas com códigos próprios, os pixadores rompem com o apagamento e reafirmam a existência de corpos e territórios historicamente marginalizados. O que para alguns é ruído visual, para outros é linguagem, protesto e permanência.

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