quarta-feira, agosto 27

Terreiros como espaços de preservação da cultura e identidade afro-indígena

Templo Caboclo Itarobá das 7 Montanhas. Foto: Nego Júnior

Por Ágapy

“Você sente um acolhimento ali dentro, mas você não pode passar constantemente dentro daquela ‘cúpula’ que é a sua religião, então você tem que sair. Por mais que seja difícil ter essa responsabilidade lá dentro e todos ao meu redor tentando me ensinar”, foi o que nos disse o Babalorisá Lucas ty Oxumare, sobre ter sido uma criança criada dentro de uma casa de axé. “Sair daquilo e ver todo mundo falando o contrário, que é errado, é muito mais conflitante do que você ter ali sua responsabilidade de pegar o igbá do seu santo, acender uma vela e colocar uma água na sua quartinha”, completou o Babalorisá, que é o sacerdote nas religiões afro-brasileiras.

Desde o início da colonização do Brasil por Portugal, os indígenas sofriam com a escravização, mas uma série de fatores fez a população indígena começar a diminuir. A violência dessa escravização, foi um fator determinante. Mas, o mais relevante foi a questão biológica, uma vez que os indígenas não possuíam anticorpos contra doenças que chegaram com os portugueses, como a varíola.
O entendimento dos historiadores, atualmente, a respeito desse assunto é que a escassez da mão de obra indígena e a instalação de um negócio que tinha alta demanda (a produção de açúcar), gerou uma demanda por mais mão de obra. E os comerciantes portugueses, identificando essa necessidade, ampliaram o tráfico negreiro a dimensões gigantescas.


Na Universidade de Emory, em Atlanta, foi realizado um estudo que estimou que 4,8 milhões de africanos foram trazidos para o Brasil durante o período da escravidão, representando o maior número de pessoas escravizadas em qualquer país das Américas.  
O tráfico de pessoas escravizadas foi de 1539 até 1850, o que resultou na chegada forçada de milhões de pessoas oriundas de diferentes regiões da África para o Brasil. Ao chegarem forçosamente, além da língua e cultura, estes povos trouxeram consigo também suas crenças. As crenças e rituais africanos originaram religiões como o Candomblé e a Umbanda, atualmente praticadas em todo país.
Entender as origens dessas religiões é entender também nossa história, os povos que nos formam e como suas crenças resistem e são preservadas dentro dos terreiros até hoje. 

Retomando nossa cultura


O Censo Demográfico 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), revelou um aumento significativo no número de adeptos das religiões de matriz africana no Brasil, como Umbanda e Candomblé. A proporção de pessoas que se declararam praticantes dessas religiões mais que triplicou, passando de 0,3% em 2010 para 1% da população em 2022. Isso representa um crescimento de 1.849.824 pessoas. Segundo os técnicos do IBGE, o crescimento se explica porque mais gente passou a explicitar sua fé, que historicamente encontrou resistência em território brasileiro.

Conversando com algumas pessoas a respeito dos terreiros serem espaços de preservação da identidade e cultura afro-indígena, me deparo com essa frase cirúrgica da Ekedji Isabela ty Oxumare, do Ile Opo Meje Osumare ty Ogum.

“Pra mim, é muito mais enriquecedor para quem eu sou. Porque, pra além de estar em um espaço onde eu posso praticar a minha fé, eu estou em um espaço onde eu posso praticar quem eu sou e de onde eu vim. Então, pra além de cultuar os orixás e as entidades, eu também cultuo a minha ancestralidade. Eu cultuo as minhas mais velhas, carrego as forças das rezas delas. As rezas embaixo da jurema, as rezas embaixo de sol quente. Também carrego elas comigo”, contou a Ekedji, que nas religiões de matriz africana é uma mulher responsável por zelar pelos orixás.


Residente na Zona Sul de São Paulo, Capão Redondo. Isabela se descreve como fotógrafa amadora da favela, poetisa desde nascimento, curiosa, cabocla em diáspora e curumim de mãe Osun. Sendo cabocla do povo Fulni-ô, as rezas, os ensinamentos sobre ervas e o contato com a espiritualidade sempre estiveram presentes em sua criação. No início da fase adulta, começa a frequentar terreiros de candomblé de nação Ketu e finca raízes no Ilé Opo Meje Osumare ty Ogum.

Ekedji Isabela ty Oxumare. Foto: Acervo pessoal

“Acho que estar num espaço, onde não cultuam os povos originários, não traria pra mim algum tipo de respeito em relação ao meu corpo. Tanto da visão deles, quanto da minha visão comigo mesma. Acho que também não seria justo comigo mesma, estar num espaço onde eu cultuo os mais velhos que vieram de outra terra e não cultuar os mais velhos que vieram da minha própria terra”, afirma Isabela. 

A Ekedji ainda completa: “Onde entra o contexto desses povos trazidos para cá, tiveram essa influência dos povos originários? Onde entram os conhecimentos que eles dividiram? Os conhecimentos que foram nascidos a partir dessa mistura, a partir de, tipo, duas nações completamente diferentes e que nem falavam o mesmo idioma, que puderam ali se ajudar e compartilhar do que sabiam. Seja com as ervas ou saberes de como entrar no meio da mata, o que cada coisa podia ser ingerida e o que não podia, sabe?! E porque eu colocaria o meu corpo nesse contexto, que já sofre constantemente com o olhar alheio de julgamento e apagamento?! Eu já tenho que lidar com o contexto urbano, que é, ou as pessoas fazendo pouco caso da minha identidade ou desacreditando”, conclui.

Sendo uma mulher cabocla, Isabela traz outra perspectiva sobre como é carregar sua identidade com raízes indígenas, estando dentro de um terreiro. Indaga que em muitas partes a religião a ajudou muito a se entender e a entender a sua identidade. Em sua trajetória dentro do axé, encontrou no candomblé de nação Ketu, um espaço onde poderia se aproximar mais das suas raízes originárias.

Ekedji Isabela com seu Babalorisà Lucas ty Oxumare. Foto: Acervo pessoal.

Ancestralidade afro-indígena


Os povos do grupo linguístico iorubá, foram responsáveis por trazer a nação de Ketu pro Brasil. Foram levados majoritariamente para Bahia, onde se tem registro do primeiro terreiro de candomblé, Ketu. Bahia, que também é um dos estados onde se tem a maior população indígena no país, população que agregou ao candomblé Ketu saberes de folhas, uso de outros utensílios, alimentos nativos, relação sagrada com a natureza, práticas de cura, maracás, ervas amazônicas nos rituais, dentre outras coisas e outros conhecimentos. Enraizando esta nação no território brasileiro de forma viva e única.

“Sou caboclo sim,
Sou caboclo sou
E não abaixo meu rumpante,
nem pra porra de sinhô.”
(Cantiga cantada pelo caboclo Pena Dourada, em um toque de nação Ketu.) 

“Falar de Candomblé, especialmente do Ketu, e das entidades que nasceram no Brasil, como caboclos, pretos-velhos e baianos, é falar da forma como os povos pretos e indígenas transformam dor em cultura, apagamento em memória e opressão em axé. Quando os primeiros navios negreiros chegaram, vieram orixás, vieram idiomas, vieram folhas e rezas. Mas aqui, esse saber ancestral encontrou um outro chão sagrado, o dos povos originários”, reflete o Babalorisà Lucas ty Oxumare. 

Durante a conversa feita na companhia de Isabela, Ekedji de sua casa, Lucas conta sobre diversas barreiras que precisou enfrentar ainda criança, por ser de religião de matriz africana.

“Foi muito difícil minha mãe chegar lá na escola e falar que eu precisava ficar três meses recolhido, ter que explicar isso foi muito confuso. Já acionaram o Conselho Tutelar pra minha mãe várias vezes. Porque eu tinha que passar três meses lá dentro. Nossa, e quando abria as curas?! Você ter que explicar como é que seu filho foi todo arranhado pra escola”, conta Babalorisá Lucas. “Por mais que seja difícil ter essa responsabilidade, todos ao meu redor tentam me ensinar essa responsabilidade, desde os oito anos. Sair daquilo ali e ver todo mundo falando o contrário, que é errado, é muito mais conflitante”, completou.

Babalorisà Lucas ty Osumare. Foto: Acervo pessoal

A partir dos dados históricos a respeito de religiões de matrizes africanas, podemos observar como é significativo e de extrema resistência manter espaços designados para a prática de seus ritos religiosos, os terreiros. E, apesar de enfrentarem barreiras sociais e o racismo religioso, fica evidente como essas pessoas, que vivenciam religiões afro-indígenas, também carregam um papel fundamental na preservação de uma cultura. Através das casas de axé, se louva o sagrado, se aprende sobre os fundamentos, sobre rezas, folhas sagradas. Mas, também se aprende uma filosofia de vida, maneiras de cultuar seu próprio Orí e a história de povos que ainda resistem e nos compõem enquanto comunidade, e o quanto isso tem influência direta na identidade de pessoas afro-indígenas.

“O que sou eu sem Ogun às 5h da manhã caminhando pro ponto? O que sou eu sem o meu fio de conta do seu sete? Orando da minha casa até o ponto, porque não tem luz nos postes da minha favela. Como eu, uma mulher de 1,50m, chego no meu ponto pra pegar meu ônibus e começar meu dia? Com fé, entende?”, finaiza Ekedji Isabela.

Registro feito em 2017, na obrigação de 7 anos do Babalorisà Lucas. Na foto, Ogun dança ao lado de Yansã. Acervo pessoal.

Ágapy, é cabocla Fulni-ô, filha de pais nordestinos, residente do Capão Redondo e artista visual.

Essa reportagem foi apurada e escrita por uma educanda através do programa Clube de Criadores EduCapão, formação centrada nos eixos de educomunicação e território, na zona sul de São Paulo. Coordenação pedagógica Rose Martins. Edição jornalística Gisele Alexandre.

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