sexta-feira, agosto 8

A resistência de vozes negras e periféricas na literatura brasileira

Por Ingrid Hora

A literatura brasileira foi historicamente formada por homens brancos, que tinham boas condições financeiras e ocupavam o papel de publicar e consumir livros, o que resultou na construção de um cenário centralizado nesse público. 

Hoje, esse contexto vem se transformando, e as produções textuais também acontecem dentro das periferias, carregando uma bagagem cultural diversa. A escritora e linguista Conceição Evaristo criou o termo “escrevivência”, em sua dissertação de mestrado, que significa relacionar quem escreve às suas vivências pessoais e coletivas, fazendo da escrita um canal de manifestação para histórias marginalizadas. Através da “escrevivência”, a literatura existe e resiste dentro das periferias.

Acervo literário da Casa Baderna, centro cultural localizado na zona sul de São Paulo. Foto: Ingrid Hora

Apesar da cultura afrodescendente ter sido desvalorizada dentro da literatura brasileira, ela sempre esteve viva no cotidiano de muitas famílias periféricas, estando presente em outras alternativas para além dos livros. Rodas de samba, almoços de família e saraus são exemplos de ambientes que, apesar de não estarem dentro de algum gênero literário, como parte de um romance ou uma poesia, são porta-vozes de histórias dentro das periferias, porque é a partir desses canais populares, majoritariamente compartilhados oralmente, que a cultura é ampliada nas quebradas. 

Mais do que existir dentro dos livros ou em salas de aula, a literatura em si está por toda a parte, porque ela expressa o modo de viver e como as pessoas enxergam o mundo. A autoficção é um estilo de escrita que combina fatos com narrativas fantasiosas, misturando o mundo real com o imaginário, e quando falamos de autores negros e periféricos, essa escrita resgata realidades vividas por eles. Essa reapropriação é importante porque a cultura afrodescendente e periférica é rica de conhecimentos e histórias que também merecem ser ouvidas, e a partir dessa diversidade, o Brasil enriquece suas narrativas.

O território é um fator importante na construção das obras desses autores. A jornalista e escritora Jéssica Moreira, em entrevista, compartilhou que se inspira nos elementos do seu bairro para a construção das suas histórias, e carrega consigo tudo o que aprendeu, e aprende, nos seus anos morando em Perus, bairro localizado na zona noroeste da cidade de São Paulo: “Toda a minha escrita, ela é territorializada, minha escrita passa pelos lugares por onde eu ando, onde eu estou. É aquele ditado, a cabeça pensa por onde os pés pisam”.

Desafios na produção e leitura

O mercado editorial ainda é um desafio para autores negros e periféricos, porque, além da falta de auxílio financeiro, existe a ausência de informações de como se publicar um livro para quem está iniciando na área. O autor de “O Doce Beijo do Caboclo”, Roniel Felipe, compartilhou a sua opinião: “Quando você é um autor independente, você é responsável por tudo, em tese. E, quando a gente abre as portas para que as pessoas possam contar suas histórias, a gente vai descobrir novas Marias Carolinas, de Carolina de Jesus”.

Do mesmo modo, a falta de visibilidade nas grandes mídias e premiações fez com que coletivos independentes fossem criados, servindo como portadores de vozes para aqueles que não se sentiam ouvidos e representados. 

“É como se o jeito como a gente escreve ou os temas aos quais nós narramos não fossem tão importantes quanto outros que a gente já viu, isso porque poucas vezes a gente está nos prêmios, poucas vezes a gente é tema de reportagens”, disse Jéssica. “Infelizmente, quando a gente olha para o mercado midiático e depois para o mercado literário, muitas vezes a gente não existiu nesses lugares. E daí o que o povo preto fez? Vamos criar, né?”, completa.

Como um meio de combater o racismo e a falta de acesso à cultura afrodescendente no Brasil, foi criada a Lei nº 10.639/03 que torna obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira e africana dentro das escolas, inclusive nas disciplinas de língua portuguesa. A criação de políticas públicas como essa é um passo importante para que a história do Brasil seja resgatada e se faça presente desde o ensino infantil, longe de estereótipos.  

Casa Baderna 2025. Acervo Pessoal

Coletividade e resistência

Os coletivos literários presentes nas periferias atuam democratizando o acesso à cultura e incentivando autores a realizarem e publicarem suas obras. A Casa Baderna, por exemplo, espaço cultural localizado na zona sul de São Paulo, traz diversos eventos literários voltados para a comunidade. 

Além dos saraus e das oficinas variadas que incentivam a produção de textos, quinzenalmente acontecem encontros do clube de leitura Sou Palavras, que utiliza dos livros da biblioteca popular para incentivar a interpretação de textos diversos. A biblioteca foi homenageada com o nome da Dona Edite, uma poetisa e ativista negra, referência no cenário da literatura periférica por, embora possuir uma deficiência visual, saber de cor poemas extensos e os recita de maneira cativante.

Dona Edite presente no Sarau da Casa Baderna, 2025. Foto: Ingrid Hora

Além disso, o entrevistado Thiago Peixoto, um dos responsáveis pela Casa Baderna, possui outros coletivos que engajam com a formação de leitores. O Slam do 13 e Poetas Ambulantes são duas atuações que acontecem nas ruas, com o objetivo de democratizar o acesso para o público itinerante, e a mensagem é passada através da palavra falada dentro do cotidiano.

“Podia estar matando, podia estar roubando, mas estou falando poesia aqui para você. Começar um sarau no busão, no trem. Distribui papéis com poesias e convida a galera a falar”, conta Thiago, que é diretor de comunicação da Casa Baderna, cofundador dos coletivos Slam do 13 e Poetas Ambulantes.

    

Biblioteca Dona Edite, acervo dentro do Baderna Literária que reúne autores periféricos de periferias ao redor do Brasil.

Falar de literatura não é apenas citar nomes representativos dentro dos livros escolares, mas sim entender que o mundo é repleto de histórias que merecem ser ouvidas e valorizadas e, a partir dessas histórias, vidas são impactadas. Existem autores que estão dentro das periferias, e o papel dessas pessoas é tão importante quanto daqueles que há anos foram citados em instituições acadêmicas. Contudo, entender que a literatura deve ser acessível a todos e existe de maneiras diversas é entender o que é a diversidade, e esse gesto convida o leitor a abranger as suas referências, questionar ideias construídas ao longo da vida e conhecer a variedade de componentes que formam o Brasil. 

“É validar quem foi historicamente invalidado e perceber a potência de quem historicamente teve a sua potência invalidada”, conclui Thiago.

Serviço:

Casa Baderna
Endereço: Av. Guarapiranga, 2376 – sobreloja – Jardim das Flores, São Paulo – SP

Horário de funcionamento: quarta à sábado, das 13h às 19h.

Ingrid Hora, nascida e crescida nas periferias da zona sul de SP, é jornalista em formação e tem o desejo de compartilhar informações e histórias para as pessoas.

Essa reportagem foi apurada e escrita por uma educanda através do programa Clube de Criadores EduCapão, formação centrada nos eixos de educomunicação e território, na zona sul de São Paulo. Coordenação pedagógica Rose Martins. Edição jornalística Gisele Alexandre.

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