terça-feira, abril 22

Spawn: o salvador de Joe Shuster

Por Matheus Polito Monteiro

Fundada em 1992, a Image Comics foi uma iniciativa de autores, principalmente desenhistas da Marvel, que estavam completamente insatisfeitos com as políticas de direitos autorais das grandes editoras norte-americanas (Marvel e DC comics). Todd McFarlane foi a mente por trás dessa iniciativa, e criador do que talvez tenha sido o maior sucesso da editora nos anos 90: Spawn.

  A Image foi uma verdadeira revolução na indústria, além de ser formada por quadrinistas experientes e que eram sucesso de vendas Todd McFarlane, Jim Lee, Erick Larsen, Whilce Portacio, Marc Silvestri, Jim Valentino e ele, sim ele Rob Liefeld (pode parecer insano, mas Liefeld vendia como água nos anos 90). Ela também fez algo inédito: deu aos seus quadrinistas direito sobre suas obras – que inovação não é mesmo? – prática definitivamente não comum na indústria, e pouco comum até os dias atuais.

Até esse momento, a Marvel e a DC, que não tinham uma concorrência a altura, se apropriavam das criações de seus autores, pagavam seus salários e suas criações eram propriedades intelectuais das empresas e não de seus criadores. A Image muda esse jogo, até mesmo forçando as duas editoras criarem selos onde os direitos autorais fossem mais flexíveis, como a Vertigo (DC). História bem conhecida no campo dos quadrinhos.

Outro fato é que os anos 90 foi a década da violência e dos anti-heróis e heróis moralmente questionáveis, consequências dos anos 80 com Watchmen (Alan Moore e Dave Gibbons), Cavaleiro das Trevas (Frank Miller) entre muitas outras e assim surge John Constantine: Hellblazer (Jamie Delano, Garth Ennis, Brian Azzarelo, entre outros), Preacher (Garth Ennis, Steve Dillon e Glenn Fabry). E na Image, claro, títulos como Witchblade (Marc Silvestri, David Wohl, Brian Haberlin, Christina Z e Michael Turner) e Savage Dragon (Erick Larsen). E com o fim do milênio, um assunto em alta era o “fim dos tempos” e a “Batalha Final” entre céu e o inferno.

Juntando todas essas coisas, dos autores com suas propriedades intelectuais roubadas ao príncipe das trevas Satã, Todd McFarlane trouxe ao mundo Spawn sua “Cria do Inferno”, que fez tanto sucesso que em 1997 já tinha filme no cinema. Spawn é apresentado, em sua biografia nos quadrinhos, como um ex-mercenário chamado Al Simmons que depois de ser assassinado vende sua alma a um demônio, Malebólgia, para voltar a vida e reencontrar sua amada, porém tratos com demônios possuem muitas letras miúdas que ninguém lê. Al Simmons volta a vida depois de 4 anos da sua morte, sua amada já está casada com outro, seu melhor amigo, e tem uma filhinha linda, Simmons então percebe que o demônio o enganou e agora ri e se diverte com as torturas mentais de seu soldado.

Simmons também não sabe quem o matou e o porquê, sua mente está extremamente confusa, não possui lembranças da sua morte, ou do inferno, suas memórias estão bagunçadas. Mas ao retornar a Nova Iorque dos anos 90, Simmons se vê em um beco com moradores de rua e por acasos da história acaba se tornando seu único protetor, Al Simmons então vira uma espécie de Padre Júlio Lancelotti do Inferno. 

E essa é a premissa de Spawn, ao menos durante os primeiros arcos de histórias, porém existe algo mais algo que encontramos em uma história inédita no Brasil até a Panini resolver republicar o herói, ou anti-herói, no Brasil recentemente o célebre capítulo escrito por Dave Sim (autor de Ceberus), Todd McFarlene a partir do volume 8 de Spawn resolveu chamar autores consagrados para escreverem uma história para Spawn, assim Alan Moore, Neil “cancelado” Gaiman, e Dave Sim escreveram, cada um uma história do soldado do Inferno. 

O que chama a atenção na história de Sim é o uso da metalinguagem para apontar Spawn, e como ele era o rosto da editora, apontava a própria Image, como o salvador dos quadrinistas roubados e explorado pelas editoras. Assim Sim mostra o sétimo círculo do Inferno, reservado aos quadrinistas e suas criações, os super-heróis trancados de um lado, e seus criadores com os rostos cobertos por um pano e corda no pescoço de outro, e com o rosto coberto de sombras vemos “aquele-que-veio-primeiro”, claramente o Superman. Cerebus então explica a Simmons quem eles são e o que o Spawn representa: uma esperança. Uma vida, a qual não é a que acompanhamos nos quadrinhos, é apresentada a Spawn, onde ele tem uma filha é casado com seu amor Wanda, e tudo parece em ordem, Spawn ainda não foi vendido, seu criador ainda tem controle sobre ele, então tudo é possível.

Mas aqui, gostaria de extrapolar a metáfora escancarada de Dave Sim, gostaria de ir além do óbvio mostrado em Spawn: origens volume 2 (originalmente Spawn vol 10 1993). Dave Sim escancara a sensação dos quadrinistas daquela época com a criação da Image, porém há mais nesse assunto que apenas essa história, principalmente quando olhamos para o Superman.

A História de Joe Shuster: o artista por trás do Superman, publicado em terras tupiniquins pela editora Aleph com roteiros de Julian Voloj (Guetto Brothers: uma lenda do Bronx) e arte de Thomas Campi é um quadrinho biográfico do desenhista original do que é considerado “o primeiro super-herói” (afirmação que não vale a pena discutir nesse texto). Shuster é apresentado ao leitor como um senhor de idade abandonado em um banco em uma praça, sendo acordado por um policial que o leva para comer algo ele começa a contar sua história para o policial e para nós, consequentemente: como o artista que criou um dos maiores ícones da cultura pop norte-americana acabou nas ruas?

A história de Shuster não é algo muito extraordinário, um homem tímido viciado em ficção científica e com muita criatividade que junto com um amigo – Jerry Siegel – dois jovens com o mesmo gosto sonhando em criar suas próprias histórias em um Estados Unidos destruído pelo recesso econômico da década de 30. Para encurtar a história, Shuster e Siegel criam o Superman, que se torna um sucesso imediato, porém nunca são recompensados de verdade pela sua criação, tendo vendido todos os direitos das publicações para dois mafiosos que eram donos da DC. Os dois nunca receberam nenhuma migalha, nem reconhecimento sobre sua criação e participação na DC, até 1978 quando sai o primeiro filme do Superman.

É nesse ano que Siegel, cansado de ser ignorado e apanhar da DC, resolve escrever uma carta aberta a comunidade dos quadrinhos, quadrinistas e leitores, essa carta expõe sua situação, tal qual a situação de Shuster e a partir da comoção geral, principalmente de quadrinistas como Alan Moore e Frank Miller, estrelas na época, a DC passa a creditar os dois e a pagar uma quantia em dinheiro, no momento final de suas vidas.

Veja, a relação de Spawn e Shuster é um pouco clara, Spawn se torna esse herói dos maltrapilhos, esquecidos, moradores de becos escuros ignorados pela sociedade, local que foi ocupado por Shuster de maneira bem vívida, não só pelo roubo de sua criação de maneira metafórica, mas também de maneira literal. Além disso Shuster é só um caso, até hoje vemos casos e mais casos de quadrinistas abandonados e com dificuldades em pagar suas despesas médicas, quadrinistas que fizeram a Marvel e a DC enriquecerem e se tornarem empresas milionárias, caso recente de Neal Adams falecido em 2022, desenhista que ajudou a ressuscitar a DC Comics nos anos 70/80, que fazia leilão de suas artes no Instagram para pagar suas despesas.

Falando em artes, as editoras muitas vezes apreendiam e queimavam as artes originais dos desenhistas, para que não pirateassem os quadrinhos, e tiravam deles seus trabalhos e outra forma de sustento, já que essas artes poderiam ser vendidas, como muitos quadrinistas fazem hoje em dia.

Spawn é fruto de seu tempo, os diálogos sofríveis e demasiados longos, ainda assim consegue ser uma leitura bem divertida. Porém com uma leitura mais contextualizada demonstra algo muito além do que é mostrado nas páginas, e mesmo com a metáfora sendo escancarada por Dave Sim, Spawn realmente foi um respiro e uma esperança aos quadrinistas dos anos 90, e que impacta até hoje a indústria dos quadrinhos.

Ainda precisamos lembrar dessas lutas e pautas, recentemente Glenn Fabry descobriu um câncer e está com pouco tempo de vida, Neal Adams pode não ter morrido pobre, mas há muito foi esquecido pela indústria, Peter David (Hulk, Homem-Aranha, entre outros) há algum tempo estava pedindo ajuda aos fãs para lidar com as despesas médicas e denunciou o abandono da Marvel. Os filmes da Marvel e da DC não significam nada para seus autores originais, que essas reivindicações continuem e que a classe artística dos quadrinhos seja cada vez mais reconhecida e valorizada.

Bom, esse é meu texto de volta à Coluna Anti-heróica do Manda Notícias, gostaria de pedir desculpas pelo atraso para a Gi, e para toda a equipe do Manda Notícias, e agora a cada 15 dias estarei entregando novamente meus textos, e também desculpa ao leitor pelo texto longo, os próximos irei tentar deixar mais dinâmico! 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *