Foto: Tiani Silvestre. História Única na Literatura
Coluna Ombala
Por Silvia Mungongo
Afinal, o que sabemos sobre as outras pessoas? Como criamos a imagem que temos de cada povo? Feche os olhos e imagine como é o continente africano ou algum estado do Nordeste. Qual foi o resultado?
Construímos o nosso conhecimento a partir das histórias que escutamos, sejam elas escritas em livros, programas de televisão ou jornais, e se não prestarmos atenção e formos atrás de um número maior de narrativas diversas, mais completas sobre determinados assuntos, corremos o risco de criar estereótipos que muitas vezes não são reais (Adichie, 2019).
Nosso papo de hoje é baseado no pensamento da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, que nasceu em Enugu, na Nigéria, em 1977. É autora dos romances Meio sol amarelo (2008), Hibisco roxo (2011) e Americanah (2014), além da coleção de contos. Sua obra foi traduzida para mais de trinta línguas. É um dos maiores nomes do feminismo e da literatura em África. E não posso deixar de dizer que ela é uma das figuras que me faz ter orgulho de ser africana. É um privilégio viver no seu tempo.
Chimamanda diz que para se ter uma única história sobre um povo, é só mostrá-lo como uma única coisa repetidas vezes e com o tempo é só isso que eles se tornarão nessa narrativa. O problema não é o fato de estarem errados, mas de estarem incompletos, superficiais e negligenciar todas as outras narrativas que formam um lugar ou pessoa.
Pegar toda a complexidade de uma pessoa e de seu contexto e reduzi-los a um só aspecto é o que Chimamanda chama de o perigo da história única. Quantas vezes já ouvimos que os árabes ou muçulmanos são perigosos/terroristas? Uma narrativa que se fortaleceu sobretudo após os ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos e que foi bastante difundida pela mídia. Provavelmente você já ouviu coisas como “nordestinos são preguiçosos e pobres coitados”, “todo mundo de quebrada é ladrão”, indígenas e africanos são incivilizados”… Aliás foi essa última ideia absurda que originou o racismo e a colonização.
No caso de África, este parece ser o lugar mais injustiçado na história mundial. Vítima de epistemicídio _ apagamento na construção do conhecimento _, invisibilização e preconceitos de todas as naturezas. Há quase dois anos morando no Brasil, vocês não imaginam os absurdos que já ouvi. São perguntas como: Você convive com leões? Como são as casas lá? Como aprendeste português tão rápido? Como você chegou ao Brasil? Eu disse que a nado (risos)…
Um dia, uma senhora me parou e, com sentimento de pena, quase me chamando de coitada, disse que achava o meu povo “guerreiro”, pois apesar da fome estamos sempre a rir e a dançar. Eu disse-lhe que não sabia dançar e que a realidade do continente é diversa… não achei oportuno aprofundar o assunto. São discursos como estes que me fazem pensar sobre o quanto de desinformação ainda temos sobre quem nos é o “outro”. Precisamos saber de tudo? Não, apenas o mínimo e não fomentar discursos preconceituosos. Um outro amigo perguntou como era a realidade econômica e social no meu país. Fiquei feliz, pois ele me colocou como protagonista na história. Certamente já ouviu várias coisas sobre um dos 54 países de África, mas ele quis ouvir o lado de quem vem de lá, de quem vive a realidade. É assim que podemos desconstruir estereótipos.
Em Angola, assistimos a alguns programas sobre criminalidade no Brasil. Quando eu disse que viria para cá, meus avós ficaram apreensivos e chegaram a dizer para eu não vir, pois tiveram apenas contato com um lado da história, e ainda cheia de sensacionalismo. É o que aquela mídia queria que soubéssemos sobre o Brasil. Se eu não fosse atrás de outras narrativas, muito provavelmente não teria embarcado naquele avião.
Por outro lado, Chimamanda destaca o poder das histórias. “Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar”. “Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade perdida”.
E a escola tem papel fundamental neste processo. Tem o desafio de ajudar o(a) estudante a enxergar o mundo com alteridade, a tirar estereótipos sobre qualquer realidade ou povo. Neste sentido, compartilho uma experiência que me é muito próxima e feliz. O Colégio Franciscano Santa Isabel, da quebrada do Jardim São Luís, desenvolveu um projeto de escrita criativa, designado “Protagonizando a nossa história: desmistificando a história única”,baseado justamente no livro desta grande escritora.
O projeto visou proporcionar aos(às) estudantes, do Fundamental ao Ensino Médio, momentos de reflexão sobre a importância de se adquirir o hábito de ler e escrever, assim como despertar neles a sensibilidade artística, destacando que todos(as) podemos ser protagonistas de nossas histórias, seja ela contada a partir de textos acadêmicos, livros de fantasia/romance/ficção/poesia ou histórias em quadrinhos.
A ideia foi permitir que eles(as) contassem suas histórias e se sentissem parte da sociedade independente da sua realidade e experiências, mas que também aprendessem sobre outras histórias, de uma forma mais criativa, e sem deixar de ver que existe uma diversidade de histórias e todas importam. Assim, foram produzidos textos nos vários gêneros literários, que refletem suas vivências e experiências do mundo ao seu redor, bem como relatos sobre os estereótipos construídos em torno de quem mora na periferia. O resultado final foi a produção de livros feitos artesanalmente junto com a bibliotecária. O projeto mobilizou professores(as) de Língua Portuguesa, Artes e a área de Pastoral.
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 1. ed. [S. l.]: Companhia das Letras, 2019. 64 p. ISBN 8535932534. ALVES, Iulo Almeida;
‘TEIXEIRA, Tiani Silvestre. História Única na Literatura. Centro Universitário Belas Artes – BA. Trabalho de conclusão do curso de produção cultural e curadoria de conteúdo, Bahia, 2024.
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Silvia Mungongo: natural de Luanda, Angola, atualmente residente na cidade de São Paulo, é socióloga, ativista, poeta e jornalista. Profissional de comunicação com sólida experiência em redação, locução, reportagem e edição. Atuou em diversas plataformas, como rádio, televisão e mídia digital, desenvolvendo e apresentando conteúdos informativos e engajadores.
Sobre a coluna: Ombala é uma palavra na língua angolana Umbundu, que significa capital ou sede. Portanto, um lugar de encontros e reencontros e onde normalmente residem Reis e Rainhas. A coluna pretende ser um espaço de reencontro da cultura africana, seus fazedores e sua abrangência na diáspora. Será um prazer ter-vos por aqui. Ngasakidila!